Consolidação Substancial na Recuperação Judicial: Engenharia reversa das técnicas de proteção e segregação patrimonial empresarial
Fabio de Paula Zacarias
A lei 14.112/20 trouxe a construção jurisprudencial da Consolidação Substancial de grupos empresariais para dentro da Lei de Falências e Recuperação Judicial (lei 11.101/05) e, com isso, as técnicas de proteção patrimonial empresarial ganham mais campo – agora via reversão legal da segregação societária e patrimonial de conglomerados empresariais em insolvência.
Há muito se fala (e se faz) sobre uso técnicas jurídicas de proteção patrimonial empresarial e, neste contexto de infindável exercício de imaginação de potenciais efeitos negativos advindos da insolvência de um negócio sobre o patrimônio, muitas estratégias protetivas são criadas, quase sempre passando pela segregação patrimonial através da criação de empresas controladas, holdings patrimoniais e holdings operacionais.
Especialmente quando tratamos de empresas e grupos empresariais familiares é possível identificar que, muitas vezes, a diversidade de negócios criados e, consequentemente, a criação de um patrimônio relevante, teve origem em um negócio principal, nasceu de uma companhia provedora de recursos suficientes a nutrir a criação de novas frentes de negócios e, logo, de constituição de bens móveis, imóveis e direitos que merecem proteção.
É bem possível afirmar que quase todo planejamento de proteção patrimonial de grupos empresariais familiares passa pela criação de novas estruturas societárias (normalmente pela criação de holdings) cujas atividades, identidade, autonomia financeira e jurídica, dentre outros aspectos, devem (ou deveriam) demonstrar a absoluta Independência em relação aos negócios operacionais, de modo a garantir o distanciamento do patrimônio constituído das típicas contingências empresariais operacionais (fiscais, trabalhistas, civis, etc).
O problema reside no fato de que, diante da insolvência do negócio operacional principal (ou de negócios coligados economicamente relevantes), mesmo com uso das técnicas de proteção, o ambiente judicial não se comporta como esperado por empresários, assessores jurídicos e consultores financeiros que cuidadosamente criaram as estratégias protetivas, permitindo indesejáveis constrições patrimoniais e, assim, gerando desgastantes discussões judiciais visando defender a Independência fática e jurídica da engenharia implementada.
Não é raro observarmos na história de grupos empresariais tradicionais já relativamente bem estruturados estrategicamente que seus novos negócios, muitas vezes, ao invés de serem forças geradoras de caixa e patrimônio, se tornam consumidores de recursos próprios, de coligadas, de terceiros e, claro, da companhia mantenedora, levando-as a enormes endividamentos e, quando não muito, rumo à insolvência.
Ao se deparar com intransponíveis dificuldades financeiras que emergem das operações, os próprios empresários acabam por criar vinculações entre as empresas do grupo (incluindo aí suas holdings patrimoniais), especialmente a confusão financeira entre elas e a oferta de garantias à terceiros credores de bens do patrimônio constituído ao longo do tempo. Até mesmo bancos e demais instituições financeiras estão familiarizadas com tais práticas protetivas e ofertam linhas de crédito com encargos financeiros relevantemente mais baixos mediante apresentação de garantias reais, se prestadas por empresas do mesmo grupo empresarial.
Assim, mesmo com planejamento societário e patrimonial razoavelmente bem estruturado, todo o grupo de empresas que forma o conglomerado empresarial aponta para a insolvência a ponto de inevitavelmente ter de se recorrer à recuperação judicial como única forma de restabelecimento da saúde financeira, em grupo.
O que pode ser feito diante deste cenário que urge por medidas céleres e efetivas? A resposta é: engenharia reversa, ou seja, a reunião das as empresas operacionais e patrimoniais como forma de demonstrar sua interligação em um sistema integrado, cujas atividades e práticas empresariais se fundem, ou melhor, se confundem a ponto de serem necessariamente vistas como um bloco inseparável. É, talvez, a única forma rápida de proteger o que resta, trazendo ao “campo de proteção” ofertada pela recuperação judicial aquele patrimônio que outrora foi segregado e fatalmente será alvo de ataques dos credores se deixado de lado, exposto e desprotegido.
Na recuperação judicial tal prática é chamada de Consolidação Substancial de empresas. A técnica, importada do direito norte americano, já reconhecida na prática jurídica e aceita pelos tribunais brasileiros e pela jurisprudência, já vinha sendo pacificamente utilizada pela comunidade jurídica brasileira.
A lei 14.112/20 inclui a seção IV-B (artigos 69-G a 69-L) na lei 11.101/05 – Lei de Falências, para disciplinar a recuperação judicial de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico, de fato ou de direito, normatizando a consolidação processual e também a Consolidação Substancial – onde, como dito, os ativos e passivos dos devedores são tratados como se pertencessem há um único devedor.
Para tanto, a novidade legislativa determinou que a Consolidação Substancial seja adotada como excepcionalidade, somente quando as empresas demonstrarem a interconexão e a confusão entre ativos e passivos de maneira que não se possa identificar corretamente a sua titularidade, mediante a identificação de atos de gestão como garantias cruzadas, relação de controle ou de dependência, identidade de participação societária e/ou atuação conjunta no mercado.
Sob o ponto de vista das técnicas jurídicas de proteção patrimonial a propositura da recuperação judicial, mediante o reconhecimento da Consolidação Substancial, pode ser visto como uma forma de “planejamento”, mas, neste caso, uma forma de proteção reversa, inteligente e legalmente prevista que, para o caso de empresas que adotaram medidas segregativas patrimoniais lícitas, restabelece-se a segregação e mantém-se um relativo nível de proteção pois, sem isso, o grupo empresarial estaria fadado a insolvência, comprometendo seu patrimônio.