Uma proposta objetiva para a reforma sindical
O debate acerca da necessidade de reformulação do sistema sindical brasileiro é mais antigo do que se possa pensar. Ele já era bastante discutido antes mesmo de nos depararmos com a Reforma Trabalhista, que pôs fim à contribuição sindical compulsória, tornando-a facultativa e, com isso, impactando diretamente na forma de financiamento da atividade sindical.
O modelo sindical brasileiro foi idealizado, na CLT, de forma que o Estado controlasse os sindicatos, impondo a eles limites à sua liberdade de organização (unicidade sindical, organização por categorias), administração (possibilidade de intervenção nos sindicatos) e completa dependência financeira (contribuição compulsória). Como escreve AMAURI MASCARO NASCIMENTO, “… o Estado atribuiu aos sindicatos funções de colaboração com o Poder Público, a partir de um princípio de publicização dos sindicatos para que, controlados pelo Estado, não se atirassem em lutas entre o capital e o trabalho” (in Direito sindical, Saraiva, 2ª edição, 1991, pg.61)
De fato, nada obstante a Constituição Federal de 1988 tenha enunciado o princípio da liberdade sindical em seu art. 8º, certo é que o modelo corporativista-estatal proposto em 1943 pela Consolidação das Leis do Trabalho não foi efetivamente quebrado, pois ela manteve a unicidade sindical (inciso II), bem como a contribuição sindical obrigatória (inciso IV), pilares do antigo sistema. O renomado autor, já citado, aponta que:
“… o sistema de organização sindical que acolheu é contraditório: tenta combinar a liberdade sindical com a unicidade sindical imposta por lei e a contribuição sindical oficial” e .”estabelece o direito de criar sindicatos sem autorização prévia do estado, mas mantém o sistema confederativo que define rigidamente bases territoriais, representação por categoria e tipos de entidades sindicais” (ib idem, pg. 76).
Assim, é possível afirmar que a Constituição de 1988 não trouxe grandes alterações no modelo sindical até então vigente. O fim da contribuição sindical obrigatória é, essa sim, uma quebra de paradigma para o atual modelo sindical, pois as entidades de classe perdem sua principal fonte de receita que, por sua vez, advinha do Estado, passando, agora, a necessitar da boa vontade de seus representados para manterem-se funcionando. Sintoma disso é a queda na arrecadação da ordem de 90% em 2018, período de um ano após a vigência da Reforma Trabalhista (in https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,sindicatos-perdem-90-da-contribuicao-sindical-no-1-ano-da-reforma-trabalhista,70002743950), com o alto número de fusões de entidades sindicais, desde que a fonte de receita cativa se foi.
Com a quebra repentina do financiamento estatal das entidades sindicais, elas se veem, hoje, completamente perdidas, sendo obrigadas a encontrar soluções para sua sobrevivência, já que nunca tiveram que conquistar a adesão de seus representados. Com uma atuação de quem jamais necessitou da sua categoria para manter-se, fato é que os sindicatos se tornaram, ao longo dos anos, maus vistos até mesmo por aqueles que representam.
Isso porque, com o financiamento estatal, os sindicatos não tinham a preocupação de representar, como deveriam, a categoria, ou mesmo prestando um serviço de qualidade. Agora, com o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical compulsória, deverão atuar de forma mais representativa, aumentando sua performance, no intuito de mostrar à categoria, sua real importância e, com isso, passar a contar com o financiamento dos próprios trabalhadores.
Mas os sintomas da desatualização do modelo sindical brasileiro podem ser notados muito antes da Reforma. Mesmo exibindo um modelo sindical confederativo (e que foi mantido na Constituição de 1988), tendo as Confederações como órgão de cúpula da pirâmide sindical, já possuíamos, há muito, a figura das Centrais Sindicais atuando como pontos de união no estabelecimento das políticas sindicais.
Essas Centrais Sindicais (CUT, CGT, USI, entre outras) surgiram espontaneamente ao largo da legislação. Basta lembrar que sua criação era proibida até 1985, quando a Portaria nº 3.100, do Ministério do Trabalho, a revogou. Ainda assim, as Centrais Sindicais apareceram e se mantiveram ativas, como entidades civis, ao longo de décadas, influenciando na política sindical.
Como bem anota JOSÉ AUGUSTO RODRIGUES PINTO, “embora não reconhecidas formalmente pela legislação que ainda estrutura a organização sindical brasileira em três graus tradicionais (…). as duas primeiras centrais sindicais mencionadas (CGT e CUT) tiveram lugar de relevo nas lutas dos trabalhadores nos últimos vinte anos e, hoje, todas elas são alvo do reconhecimento de sua atuação de fato, nos processos de negociação e reinvindicação das massas operárias.
Esse já era, pois, um sintoma concreto que apontava o desajuste e a desatualização da estrutura sindical brasileira, algo que durou até que a Lei nº 11.648/2008 as introduziu formal e legalmente nessa estrutura.
Temos um modelo sindical, portanto, ultrapassado e fadado à ruína, especialmente agora que um de seus principais pilares, o financiamento estatal, foi derrubado, ainda que não tenha desaparecido inteiramente.
Precisamos decidir, de uma vez, que caminhos iremos seguir em relação ao sindicalismo. O modelo corporativo-estatal foi implantado pela CLT e nem mesmo a promulgação da Constituição de 1988 o derrubou. Preferiu ser reticente e abrigar um modelo contraditório, como visto: de um lado, enunciando o princípio da liberdade sindical, de outro, mantendo amarras organizacionais e de financiamento, incompatíveis com essa mesma liberdade. Perdeu-se, então, uma excelente oportunidade de atualização do nosso modelo sindical e, se assim já tivesse o legislador agido, estaríamos hoje num estágio muito mais avançado em termos de sindicalismo.
A questão que se coloca é, pois, qual o caminho que iremos seguir? Que o modelo sindical atual está ultrapassado, ninguém discorda, nem mesmo o próprio movimento sindical. SÉRGIO LUIZ LEITE, 1º Secretário da Força Sindical, escreve em artigo publicado no site da entidade:
“Talvez a unicidade sindical não mais atenda as exigências de um contemporâneo mercado de trabalho em profunda transformação. A atual forma de representação sindical não consegue abranger com qualidade as novas formas de contratação, tais como, teletrabalhadores, intermitentes, terceirizados, temporários, tempo parcial, “pejotizados”, “uberizados”, dentre outros. Entretanto, estas mutações – em regra precarizantes – suscitam também questões sobre o futuro da estrutura sindical brasileira. Uma nova ordem nas relações de trabalho parece impor um novo modelo de organização sindical e de sistema negocial” (http://www.fsindical.org.br/artigos/qual-reforma-sindical-queremos, acessado em 02/10/2019)
Temos algo por certo, pois: a reforma sindical é necessária. Mas em que bases? Não pretendemos, nessas poucas linhas que dispomos, fazer uma análise profunda do tema, mas, de forma objetiva, caminhos podem ser apontados.
O primeiro deles seria a ratificação da Convenção nº 87 da OIT, da qual o Brasil é signatário, que trata exatamente da liberdade sindical, sob quatro aspectos básicos: o direito de fundar sindicatos, o direito de administrar sindicatos, o direito de atuação nos sindicatos e o direito de filiação ou desfiliação em um sindicato. Todos, até garantidos pela Carta Constitucional em vigor, mas que, na prática, ainda mantém institutos incondizentes com o princípio da ampla liberdade sindical apregoado pela citada Convenção.
Sob esse aspecto, podemos dizer que já flertamos com o modelo de liberdade sindical ampla há tempos. O primeiro passo foi dado pela Constituição de 1988, ao liberar os sindicatos das amarras administrativas do Estado, que não mais pode interferir na criação e no funcionamento dos sindicatos, proibindo, inclusive, a possibilidade de intervenção.
O segundo, e talvez mais impactante, foi o fim da compulsoriedade da contribuição sindical com a promulgaao da Reforma Trabalhista, onde os sindicatos perderam sua fonte de receita cativa e viram sua receita dramaticamente cair, dado que a esmagadora maioria dos integrantes da categoria não considera importante contribuir para o sustento financeiro da entidade.
Nesse ponto, o principal efeito da extinção da contribuição sindical compulsória é obrigar os sindicatos a serem mais representativos, com a efetiva defesa dos interesses dos trabalhadores, pois fica muito evidente que os trabalhadores só irão contribuir com aquelas entidades que, de fato, os representarem.
Para isso, nos parece necessário dar fim à organização dos sindicatos por categorias, liberando empregados e empregadores para se reunirem em torno da entidade que se revelar mais representativa.
É importante acabar, de uma vez por todas, com os critérios vigentes para a criação de sindicatos, abrindo campo para criação de sindicatos, não em função da categoria a que pertence o trabalhador ou a empresa, tampouco a área territorial em que se situe, mas em razão dos interesses convergentes que possuam. A comunhão de interesses nos afigura ser a força gravitacional que irá aglutinar interessados em criar, de forma espontânea, sindicatos que realmente lutem para atingir objetivos traçados pela vontade coletiva e, aí sim, se mostrarem representativos. Critérios como categoria e território são insuficientes para criarem essa vontade coletiva, senão de forma absolutamente artificial.
Como bem aponta JOSÉ CARLOS AROUCA em sua obra “Repensando o Sindicato”, “…a formação espontânea das associações sindicais num sistema capitalista, supõe necessariamente a definição de uma vontade coletiva extraída do consenso revelado majoritariamente numa assembleia aberta a todos que pretendam se fazer representados, beneficiando-se do resultado de uma luta comum” (ob. cit., editora LTr, São Paulo, 1988, pg. 484)
Também nos parece oportuno, já que estamos tratando de uma reforma sindical, que a contribuição sindical obrigatória seja definitivamente extinta, o que irá acabar com os sindicatos de fachada, sobrevivendo apenas aqueles que se mostrem verdadeiramente atuantes e, assim, façam por merecer sua sustentação financeira através de contribuições espontâneas dos representados.
Outro ponto relevante é acabar de vez com o modelo confederativo atualmente vigente, de forma que as Centrais Sindicais possam fazer parte do sistema sindical, conferindo a elas poder de negociação. AROUCA, nesse ponto, afirma que “numa coisa não parece haver dissensão, as centrais sindicais não podem ficar à margem da estrutura e não há como unifica-las ou impor, neste ponto, o regime unitário” (ob. cit., pg. 501).
Esses são pontos que, na visão de juristas e dos próprios sindicalistas, devem ser abordados numa reforma sindical. É claro que essas mudanças mexerão profundamente com a realidade vigente e sindicatos desaparecerão. Esse é o preço que pagamos por mais de 70 anos de atraso. Contudo, é importante darmos início a uma alteração profunda de nosso modelo sindical, porque o trabalho formal e a indústria vivem tempos de profunda transformação, que estão a exigir um tipo diferente de sindicalismo, sem as barreiras hoje existentes.
A terceirização, o trabalho intermitente, o trabalho parcial, e outras formas de contratação, ao lado da modernização das formas de produção, com sua informatização e robotização, estão criando interesses convergentes de categorias diversas, transpondo, por isso, os limites que nossa legislação impõe para a criação de sindicatos.
Tomando as palavras, mais uma vez, de SÉRGIO LUIZ LEITE, “fato é que novos tempos chegaram e mudanças estão ocorrendo em diversos setores e instituições, o movimento sindical precisa se adaptar ao novo mundo pós-indústria 4.0 para que consiga representar os trabalhadores de forma a corresponder às necessidades que o momento apresenta” (http://www.fsindical.org.br/artigos/qual-reforma-sindical-queremos, acessado em 02/10/2019). Isso serve não apenas para os trabalhadores, mas também para o próprio capital.